20 novembro 2006

"E é amar assim, perdidamente..."

Descobri que a melhor maneira de aquecer as mãos (e o coração) num dia de muito frio é passar algum tempo a sós com o meu violoncelo.
Numa sala silenciosa e escura, que tinha como únicas fontes de luz 2 candeeiros baratos e uma lareira acesa, o ambiente era propício à intimidade. Sentei-me com ele e começámos a conversar. Eu brandia o arco com firmeza e mexia os dedos da mão esquerda o mais rapidamente que o frio me permitia, e o violoncelo respondia, conforme concordava ou não comigo.
Passado algum tempo, apercebi-me de tudo o que este instrumento já viveu comigo. Já foi lesionado, já foi operado (a sangue frio e por amadores), já viajou, já sentiu as minhas lágrimas a escorrer por ele abaixo, já sentiu e viveu comigo a tristeza e a alegria de tocar. Já ouviu palmas e sentiu apupos. Já foi feliz comigo, já se sentiu magoado comigo, já foi padrinho de muitas emoções (que acabaram sempre por ter a ver com música, mesmo que assim não pareça).

Da minha parte, eu já suspirei por ele, já me enervei por ele, já tive vontade de o atirar pela janela (ou contra o chão repetidamente, tipo estrela de rock), já amei por ele e através dele...
Dele, tenho 2 cicatrizes: na parte interior dos meus joelhos (um pouco acima) tenho duas marcas, de tanto o apertar contra as minhas pernas (sobressaem principalmente quando toco de saia), e nos dedos da mão esquerda os calos vão aumentando e diminuindo, sendo que neste momento posso orgulhosamente anunciar que o meu terceiro dedo (o anelar, para os leigos, e quarto dedo, para essa raça estranha que são os pianistas) já faz som sozinho, e que o meu polegar apresenta já uma pequena mancha de sangue pisado.
(Enfim, pequenas vitórias da mortificação corporal que são os estudos de Duport.)


Às vezes, quando tenho frio, abraço-me a ele, e ficamos ali os dois, quietos, a amar-nos mutuamente. Gosto de o apertar contra mim e de lhe beijar a cravelha respectiva à corda dó (não por ser a corda de que mais gosto – apesar de isso ser verdade – mas por ser a que fica ao nível da minha boca). Gosto de lhe tirar a resina espalhada pelo tampo com um pano branco e dar-lhe miminhos, fazer-lhe festinhas, falar com ele. Por favor, não pensem que sou maluca, mas se eu o abandono durante uns dias, ele vinga-se quando lhe volto a pegar – é muito caprichoso.
Gosto de lhe dizer que o amo – mas apenas quando realmente o sinto. Acho que, por tudo o que já passámos juntos, ele merece saber...

Quando me sento sozinha com ele, às vezes sinto que só ele é que me compreende. Apesar de por vezes ser incrivelmente difícil fazê-lo compreender o que sinto. Penso que o problema não é dele, é meu. Eu é que não me consigo exprimir decentemente. Tento, e tento de várias maneiras, e ele mostra-se sempre terrivelmente exigente. Faz-me lutar sempre pela melhor maneira de me exprimir, e nem sempre consigo. É nessas alturas que o odeio (mas só um bocadinho; não há muito espaço para ódio nesta relação). Odeio-o, por se fazer de tão difícil.
Parece tão simples, não é? Eu digo-lhe: Réb-Si-Dó. Não é óbvio que quero dizer desespero? Mas não... Para ele, eu tenho de ir muito mais longe do que isso... Tenho de sentir intensamente,
fazê-lo compreender isso como se não houvesse outra verdade no mundo, e só depois disso será possível o resto do mundo compreender o que quero dizer. No momento em que conseguir fazê-lo compreender o que sinto, sei que vou conseguir exprimir-me para o mundo. Até lá, tenho de continuar a tentar...


(Odeio ser interrompida quando toco – ou escrevo. É como estar a fazer amor e alguém telefonar a meio.)



Agora que penso nisso, de cada vez que me sento e estendo os braços para lhe pegar, como uma criança carente que estende os braços a pedir o colo da mãe, digo “Come here, baby...” (como na música dos Aerosmith). Faço isso de todas as vezes que lhe pego. É automático... Não sei quando nem porque é que ganhei este hábito, mas há muitos anos que o faço.

Também já tentei fechar os olhos quando toco. Às vezes sinto-me ridícula, mas ajuda. Consigo concentrar-me só no nele e em mim, nos dedos e nas cordas, no arco e no som, no que estou a sentir e no que quero que sinta toda a gente à minha volta, e em mais nada.
Concentro-me no que sinto, e não no que penso. Sinto desespero, não Réb-Si-Dó.
Afinal sempre é simples! Se calhar sou eu que complico demasiado. O sentimento está latente, basta explorá-lo.


E amar. Amando é a única forma de se fazer música. Cada vez tenho mais a certeza disso.

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