Sorrisos, estrelas cadentes e outras histórias inacabadas
Trocaste-me as voltas, bolas. Eu, que toda a minha vida achei que não temia a morte, agora (e só agora, passado quase um mês) me apercebo de que me aterroriza. Não por mim, mas pelos outros. O dia 12 de Julho de 2007 não foi o mais triste da minha vida - já se estava mais ou menos à espera do desfecho dos 12 dias de notícias em crescendo para o grave - mas só agora me apercebo de quanto me fez temer a morte daqueles que mais adoro. (Não devia ser ao contrário? Não devia já ter-me habituado?)Pensei que o teu "elogio fúnebre" (expressão deveras engraçada, se mo permites) seria a coisa mais bonita que algum dia ia escrever. Não fui capaz e, aliás, depressa me apercebi de que não era esse o objectivo. Houve muita coisa que ficou por dizer - tanto no funeral como entre nós os dois. Coisas só nossas, que ninguém ia perceber... Por isso, fica aqui uma derradeira conversa - não digo homenagem, porque acredito sinceramente que essa representamos nós, eu e o JP, enquanto vivermos dignamente.
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Apesar de tudo o que passámos, dos anos bons e dos anos maus, estranhamente (ou não?) os momentos em que tenho pensado mais são aqueles que não se situam nem numa categoria nem na outra. São momentos únicos, isolados, e muito, muito nossos. Aqueles momentos tão à filme que, se eu não os tivesse vivido, podia pensar que eram tirados de um qualquer filme sentimentalista americano. (Aliás, toda a tua vida é tão ironicamente cinematográfica que às vezes me pergunto se não serei, sem o saber, uma personagem secundária de um filme rodado às minhas escondidas).
Como naquela manhã chuvosa em que eu estava a passar na passadeira, casaco preto comprido até aos joelhos e chapéu de chuva cor de laranja vivo a dar um pouco de cor à cinzenta paisagem.
(De cada vez que penso nela, a cena desenrola-se à frente dos meus olhos previamente montada, de vários ângulos e com uma melancólica banda sonora por trás.)
O momento em que eu, personagem principal, pouso os olhos na figura curvada pela chuva que caminha meio indecisa do outro lado do passeio, casaco azul escuro e cabelo grisalho. Eu estaco, com um sorriso tão surpreso quanto divertido, e espero que tu levantes os olhos do chão para os passeares vagamente pelo sítio onde eu estou parada, até que me vês.
Ali estava eu, à chuva, casaco preto comprido e chapéu de chuva cor de laranja, parada, a sorrir para ti. Eram 9h10 da manhã, as minhas aulas começavam às 8h30 e tu sabias bem disso, mas não parecia importar a nenhum dos dois porque continuávamos ali parados a sorrir. E quando eu me aproximei de ti e balbuciei qualquer coisa como "Adormeci" (e era bem verdade!) tu simplesmente sorriste e disseste: "Vá, anda lá, eu levo-te à escola." (Tenho a certeza que terias pegado na minha mochila, se eu fosse responsável o suficiente para ter uma.)
Ou como naquela tarde em que eu estava muito atarefada e esperava tudo menos ouvir a tua voz. Eu estava quase a entrar em palco e estava desesperadamente à procura de um papel na minha mala, e quando finalmente o tirei e me ocupei em ler rapidamente e em voz baixa o que dizia, ouvi uma voz, que não identifiquei imediatamente porque naquele momento estava apenas preocupada em rever o que tinha de dizer para apresentar a peça que íamos tocar a seguir. A voz, que não percebi logo de onde vinha, disse: "Tens cábulas, é?" Quando levantei os olhos do papel vi-te a olhar para mim com um sorriso de miúdo traquina.
Esperava tudo nesse dia menos ver-te dentro daquela sala.
Esse concerto correu-nos especialmente bem. Foi a última vez que me ouviste tocar.
"There will be a day when we meet again, my friend. But not yet... Not yet."
Se o próximo dia 12 é importante não é porque faz um mês que nos deixaste aqui à nora, mas sim porque nessa noite vai haver um chuva de estrelas cadentes. Tenho uma imagem muito nítida de nós os dois (eu ainda pequenina) deitados num cobertor no chão do jardim, a olhar para o céu. (Lembro-me de pensar quão estúpidos os homens de antigamente deviam ser para não perceberem que a Terra era realmente redonda quando olhavam para o céu.)
Faz nesse mesmo dia 12 exactamente um ano que, pouco tempo depois de me prometeres sob as estrelas cadentes que tudo ia melhorar, te telefonei a dizer que ia haver mais uma das nossas chuvas de estrelas. Lembro-me da cumplicidade que senti quando nos rimos a chorar e pensámos em simultâneo que aquilo era de certeza um sinal de que a esperança podia ser renovada, pois tudo ia melhorar. Nunca pensei que amanhã, um ano depois, não fosses estar pelo menos à distância de um telefonema, para nos rirmos juntos mais uma vez.
Às vezes pergunto-me se a dor algum dia irá passar. Se algum dia vou acordar sem pensar em ti antes de qualquer outra coisa. Pergunto-me se algum dia vai deixar de ser doloroso olhar para o mar, do qual agora fazes parte, e ver os barcos a passar e pensar onde estarás e se alguma vez nos vamos voltar a ver. Aterroriza-me a ideia de nunca mais, nunca mais, te ver. Gosto de pensar que um dia, quando eu morrer, nos vamos encontrar de novo e eu vou poder matar as saudades de uma vida quase inteira, mas quanto mais o tempo passa mais perco essa esperança, não sei porquê.
(E se nunca mais te vir? Não quero nunca mais te ver, já estou a morrer de saudades e ainda só passou um mês...)
E ficámos com uma conversa por acabar! Naquele dia em que nos encontrámos em Entrecampos e tu me compraste flores porque estavas feliz... Eu tinha de ir para Sete Rios, por isso fomos os dois a pé, a conversar imenso enquanto subíamos as Forças Armadas. Nesse dia senti que parecíamos mais dois amigos que pai e filha. Contaste-me montes de histórias sobre a tua adolescência enquanto lanchávamos e depois, quando nos separámos, prometeste que um dia me contavas tudo sobre o teu passado activista.
Esse dia é uma das melhores recordações que tenho nossas dos últimos tempos.
Tal como aquele dia em que me foste buscar a casa para irmos a pé até ao IGL porque eu tinha uma aula extra de ATC (mas porque raio é que acabávamos sempre por passar em Entrecampos?!...) e depois quando chegámos lá eu resolvi que não valia a pena ir à aula e voltámos para trás, a rir e a gozar...
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Amanhã, dia 12 de Agosto, vou-me sentar na praia, à noite, à espera da habitual chuva de estrelas. Rodeada pelo céu, pelo vento, pelo mar e pelas estrelas, espero mesmo ver-te por ali. Até logo!