28 julho 2006

A apara

No afia a apara descansava, linda, direita, como uma apara de um lápis de um artista que se orgulha de ter saído de 1 lápis que desenhava as coisas mais belas do mundo. Era verdade, para bem dizer. O lápis (o dono do) desenhava coisas muito belas. Por isso a apara tinha uma certa razão para tal orgulho.
Como se soubesse que estava morta, não mais ligada ao lápis maravilha, mas ainda orgulhosa e sem querer aceitar a sua sorte, de que já não tem nada a ver, já não faz desenhos maravilhosos. E a seguir a ela, muitos outras viriam...
Mas ela, aquela apara, estava ali, incapaz de ser tocada pelo desgosto, estava-lhe indiferente!

Irritou-me vê-la ali tão bela, impune, dentro do afia verde que de certeza faria seu território.
‘Esta era uma apara “cor-de-rosa”, daquelas que mesmo estando mortas não aceitam a realidade, e querem à mesma os seus criados e não querem sujar as unhas’, pensei eu, e pareceu-me até que a apara tinha as mesmas feições que o lápis.
Apeteceu-me esmagá-la, talvez por inveja, não sei, mas ela estava a provocar-me, com toda aquela beleza e orgulho despropositado.
(As aparas não costumam afectar-me, não vá o leitor achar que sou doida, mas aquela estava mesmo a merecer.)

Bem, abri o afia e pressionei o meu dedo indicador contra a apara orgulhosa. Fechei de novo o afia, pousei-o e olhei para a apara, por acaso da mesma perspectiva de quando olhava para ela segundos antes de a calar. Vi desta vez uma borboleta esmagada, na poeira ainda por assentar de uma tempestade no deserto.
Não era uma visão muito agradável (nem esta descrição o é), fazia-me sentir uma assassina compulsiva, maldosa e corroída pelo ciúme. Por isso, e talvez também por cobardia, levantei-me, peguei no afia e deitei a apara outrora feliz no lixo.

Cobarde.


[Foto de Caitriona]

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